Aprofundando o conhecimento sobre o estado de flow e sua influência na Cultura Organizacional e nas relações pessoais e profissionais.
A transição do modelo de comando e controle para uma estrutura organizacional mais horizontal e colaborativa é uma jornada complexa, que envolve não apenas a mudança de processos, mas também uma transformação cultural profunda. Acessar o estado de flow, tanto individual quanto coletivo, é um elemento chave nessa mudança, por conta de potencializar o desempenho, a inovação e a satisfação no trabalho.
Para compreender como o flow pode beneficiar as organizações, é essencial entender suas características e como ele pode ser estimulado e ativado. O psicólogo PhD húngaro Mihaly Csikszentmihalyi descreveu o flow como um estado de concentração tão intenso que resulta em uma sensação de êxtase e clareza, algo que já tinha sido também entendido por Abraham Maslow no início dos anos 60, quando publicou uma obra detalhando os estados de pico, ou ápice que culminavam em autorrealização.
A pessoa em flow perde a noção do tempo e se sente parte de algo maior. O flow acontece em um ciclo que inclui fases de desafio e esforço, liberação, o flow em si e a recuperação, que busca repor as reservas de hormônios e neurotransmissores consumidos durante a experiência. A compreensão e a gestão desse ciclo são vitais para o desempenho e plenitude.
A premissa é haver um preparo, onde as interrupções externas e internas se reduzam (seria a fase 1 do ciclo com as 4 subsequentes). Note as frequências cerebrais presentes em cada fase, além da descarga de hormônios e neurotransmissores em cada uma.
Em um ambiente onde a autonomia é valorizada, os colaboradores são encorajados a tomar a iniciativa e a assumir responsabilidade por seu trabalho. Isso não só aumenta a probabilidade de alcançar o estado de flow, mas também fortalece a noção de maestria, uma das necessidades intrínsecas que motivam o ser humano, segundo a teoria da autodeterminação.
A maestria, acompanhada de autonomia e propósito, pode levar a um desempenho extraordinário e ao entendimento de que os resultados, entregas e metas batidas, serão consequências e não objetivos finais.
O Flow Coletivo e a Inteligência Colaborativa
O flow coletivo é um fenômeno que ocorre quando uma equipe inteira entra em um estado compartilhado de absorção em suas tarefas. Este estado pode ser cultivado através de objetivos compartilhados, comunicação clara e um ambiente que promova a interação e a colaboração.
O flow coletivo pode ser visto como uma forma de inteligência colaborativa, onde a soma dos esforços individuais resulta em um resultado superior ao que seria possível individualmente.
Veja as evidências científicas do flow coletivo nessa conversa que eu e Alexandre Santille da teya tivemos com o neurocientista Mohammad Shehata em 2022.
Alguns ‘gatilhos’ são cruciais para acessar o flow em equipe:
Metas e riscos compartilhados:
Quanto o time se vê nessa posição, entende que ninguém faz nada sozinho e que o risco pode ser um trampolim para o resultado, por gerar ainda mais foco e concentração porque o flow segue o foco.
organizações que migram para um modelo horizontal tendem a focar menos em metas financeiras de curto prazo e mais em valores de longo prazo, como a sustentabilidade e o impacto social. O lucro deixa de ser o objetivo principal para se tornar a consequência natural de fazer negócios de maneira responsável e inovadora.
O flow é um aliado das organizações para alcançar este objetivo, quando há engajamento e motivação (intrínseca e extrínseca), os níveis de criatividade e produtividade crescem de forma sustentada.
Construindo uma Organização sem Medo
A segurança psicológica, um conceito estudado desde os anos 90 por Amy Edmondson (veja o livro dela aqui), é crucial para que as pessoas se sintam confortáveis para assumir riscos e inovar sem medo de críticas, resistências e julgamentos.
Isso é especialmente importante em organizações que estão passando por uma transformação e precisam de todas as ideias e contribuições possíveis. Líderes conscientes criam ambientes onde os erros são vistos como oportunidades de aprendizado e onde o medo de falhar não inibe a disposição para tentar.
Abrindo o debate na sua organização
Promover o conhecimento do estado de flow em uma organização requer uma abordagem holística que leva em consideração o bem-estar dos colaboradores, a estrutura organizacional e os processos de trabalho.
Listo aqui abaixo algumas estratégias práticas para cultivar o estado de flow:
-Desenvolvimento Profissional Contínuo
Investir na capacitação e desenvolvimento dos colaboradores para que eles se sintam desafiados e capazes de crescer com suas tarefas.
- Espaço para a Inovação
Criar "laboratórios", “projetos piloto” ou espaços seguros onde novas ideias possam ser testadas sem o medo do fracasso.
- Reconhecimento e Feedback
Estabelecer sistemas de reconhecimento que valorizem o progresso e não apenas os resultados finais.
- Comunicação Transparente:
Manter linhas de comunicação abertas e claras que permitam que todos na organização saibam o que está acontecendo em tempo real. Comunicação de cima para baixo, de baixo para cima, para os lados, de forma verdadeira, fluída e transparente.
Sem agenda oculta. Sem segundas intenções.
Veja meu modelo 9 Cs da Liderança Consciente e equipes de alta performance:
Há um décimo C oculto.
Para promover a cultura de flow na sua organização, é preciso CORAGEM.
Promover o conhecimento e a adoção do flow na sua equipe é uma estratégia valiosa para aumentar a produtividade, a criatividade e a satisfação no trabalho.
Aqui estão algumas práticas que podem ajudar a implementar e sustentar essa estratégia e estilo de liderança e espírito de equipe:
Defina Objetivos Claros e Desafiadores:
Estabeleça metas que sejam desafiadoras, mas alcançáveis. Isso motiva os membros da equipe a se concentrarem e se envolverem profundamente nas tarefas.
Proporcione Autonomia:
Dê aos colaboradores a liberdade de tomar decisões e escolher como executar suas tarefas. A autonomia aumenta o senso de controle e contribui para o estado de flow.
Crie um Ambiente Livre de Interrupções:
Minimize distrações, como notificações de e-mail ou reuniões frequentes. Um ambiente tranquilo permite que as pessoas se concentrem completamente em suas atividades.
Forneça Feedback Imediato e Contínuo:
Feedback regular ajuda os colaboradores a ajustar seu desempenho e a permanecerem no caminho certo. Isso também mantém o foco e a motivação.
Promova o Desenvolvimento de Habilidades:
Incentive a aprendizagem contínua e o desenvolvimento de habilidades relevantes para o trabalho. Quanto mais interessadas, competentes e preparadas as pessoas se sentirem, maior a probabilidade de entrarem em estado de flow.
Estimule o Trabalho Significativo:
Conecte as tarefas diárias ao propósito maior da organização. Vivemos uma média de 70% no trabalho ou em atividades em torno dele. São aproximadamente 90.000 horas da nossa vida. Precisa valer a pena. Quando os colaboradores veem o significado em seu trabalho, eles se envolvem mais profundamente.
Crie Desafios Graduais:
Introduza gradualmente tarefas mais complexas e desafiadoras. Isso ajuda a evitar o tédio e mantém o interesse.
Promova a Colaboração e o Apoio Mútuo:
Equipes que se apoiam mutuamente e compartilham conhecimento têm mais probabilidade de entrar em estado de flow coletivo. Encoraje a colaboração e a troca de ideias.
Reconheça e Celebre as Conquistas:
Celebre os marcos alcançados pela equipe. O reconhecimento positivo reforça a identidade, os vínculos, o engajamento e a sensação de realização.
Líderes como Facilitadores:
Líderes conscientes desempenham um papel fundamental na promoção do estado de flow. Eles devem ser facilitadores, removendo obstáculos e criando um ambiente propício ao acesso ao estado de flow.
Lembre-se de que o flow é uma experiência individual, mas quando cultivado em toda a equipe, pode levar a resultados excepcionais. Encoraje a prática dessas estratégias e observe como a produtividade e a satisfação da equipe florescem. Liderança é algo que se vivencia como um todo.
Tenho defendido que a liderança além do ego é o ponto de partida para um líder consciente. Trago abaixo o conceito que a Kat (Katrijn) van Oudheusden prega e que eu abraço completamente:
"Não existem líderes.
Existe apenas liderança.
A liderança não está em uma pessoa ou é de uma pessoa, é uma atividade.
Não é o indivíduo que é um líder.
A liderança não pertence a ele.
Ele não cria a liderança.
Líderes são organismos pelos quais a liderança flui.
Se pudéssemos começar a ver as coisas dessa forma,
teríamos uma liderança sem egoísmo".
(Se você está curioso sobre essa "liderança sem ego", aguarde.
Em breve, o livro "Selfless Leadership" da Katrijn, será publicado em português, estou pessoalmente empenhado nessa jornada de tradução e adaptação. Se você não quiser esperar segue o link para a versão em inglês aqui.
Como mensurar o nível de flow do time e da organização
Medir o estado de flow em uma equipe é fundamental para compreender o nível de engajamento e produtividade. Embora o estado de flow seja uma experiência subjetiva, existem algumas abordagens que podem ajudar a avaliar e promover esse estado:
Observação e Feedback:
Observe o comportamento dos membros da equipe durante as tarefas. Eles parecem imersos e concentrados? Dê feedback sobre o desempenho e a sensação de flow.
Questionários e Entrevistas:
Crie questionários ou conduza entrevistas para avaliar o grau de concentração, satisfação e perda de noção de tempo durante o trabalho. Pergunte sobre a experiência subjetiva de flow.
Indicadores de Produtividade:
Aumento da produtividade pode ser um indicativo de flow. Compare o desempenho atual com períodos anteriores e avalie se houve um aumento significativo.
Tempo de Execução de Tarefas:
O tempo gasto em uma tarefa pode indicar se os colaboradores estão imersos. Se o tempo passa rapidamente, pode ser um sinal de flow.
Feedback dos Próprios Colaboradores:
Pergunte diretamente aos membros da equipe como eles se sentem durante o trabalho. Eles relatam sensações de foco, prazer e energia?
Lembre-se de que o estado de flow é altamente individual e pode variar entre os membros da equipe. O importante é criar um ambiente que favoreça a imersão e o engajamento, permitindo que cada pessoa alcance seu potencial máximo.
Promovendo o estado de flow em equipes remotas
Autonomia e confiança:
Da mesma forma que no ambiente presencial, no remoto também é necessário estabelecer metas que sejam desafiadoras, mas alcançáveis. Isso motiva os membros da equipe a se concentrarem e se envolverem profundamente nas tarefas.
Proporcionar autonomia neste caso é fundamental (sem microgerenciamento por favor).
A liberdade de tomar decisões e escolher como executar suas tarefas mostram o quanto a gestão pessoal e profissional são reconhecidas e valorizadas. Neste caso, estamos a um passo do flow (veja o quadro abaixo). A autonomia aumenta o senso de controle e contribui para o estado de flow.
A relação entre desafio e habilidade é o segredo. Nâo se entra em flow sem haver um mínimo domínio da atividade. Se for muito difícil e eu não tiver a capacitação, precisarei de mais tempo de preparo/aprendizado ou a calibragem do desafio.
Aqui, listei alguns dos benefícios que tenho visto acontecer em iniciativas de estabelecer uma cultura de flow para organizações em processo de transformação:
- Maior engajamento e realização dos colaboradores, fazendo com que se sintam parte integrante da mudança.
- Mais produtividade e criatividade emergente, permitindo que as equipes executem tarefas complexas de forma eficiente e inovadora.
- Crescimento das habilidades e autonomia das pessoas à medida que são estimulados a tomar iniciativas para acessar o flow e buscar resultados e plenitude
- Melhorias contínuas impulsionadas de baixo para cima, com as equipes encontrando soluções de forma autônoma.
- Fortalecimento dos vínculos entre os membros das equipes, gerando coesão e confiança necessárias aos momentos de incerteza.
- Maior resiliência coletiva para superar desafios, já que o compartilhamento da experiência do flow aproxima as pessoas.
- Atração e retenção de talentos, pois o flow aumenta o bem-estar e satisfação no trabalho.
- Resultados de negócio mais consistentes em longo prazo, uma vez que as equipes se estruturam em processos ágeis e orgânicos.
- Agilidade para acompanhar as mudanças de mercado, já que as organizações desenvolvem maior capacidade de aprendizagem e reinvenção contínuas.
Mas...
Como falei acima, coragem é uma atitude necessária para enfrentar alguns dos principais desafios que as organizações enfrentam ao tentar implementar uma cultura de flow, como detalho abaixo:
- Mentalidade ainda muito ancorada nos modelos tradicionais de comando e controle, dificultando a adoção de estruturas mais horizontais e ágeis.
- Falta de compreensão sobre o que é o estado de flow e como estimulá-lo na prática nas equipes.
- Dificuldade em abandonar métricas e objetivos muito focalizados no curto prazo, em detrimento de resultados perenes, consistentes, de longo prazo.
- Medo da liderança em abdicar do controle e dar autonomia real às equipes.
- Cultura organizacional pouco adaptada aos valores do flow, como experimentação, aprendizado contínuo e o 'errar' de forma criativa.
- Equipes não preparadas para lidar com a ambiguidade inerente aos processos mais orgânicos e autodirigidos.
- Dificuldade em estabelecer ambientes psicologicamente seguros para que as pessoas se sintam à vontade para arriscar novas ideias.
- Resistência dos colaboradores acostumados a processos mais burocráticos e rigídos.
- Falta de ferramentas e métricas apropriadas para identificar e monitorar o estado de flow.
Na verdade, esse ainda seria um segundo passo, dado que o tema ainda é desconhecido pela maior parte das organizações e mesmo dos profissionais de recursos humanos...
- Desafio de replicar iniciativas bem-sucedidas em larga escala na organização.
Portanto, é um processo gradual, que demanda comprometimento da alta liderança e mudanças culturais.
Desaprenda. Reaprenda.
As principais mudanças culturais necessárias para implementar o estado de flow nas organizações são:
- Fortalecimento dos valores de autonomia, confiança, aprendizado e experimentação. O medo do erro deve dar lugar ao incentivo ao erro para diminuição da curva de aprendizado. Errar muito e rápido.
- Mentalidade de crescimento substituindo a controladora, muitas vezes julgadora e punitiva. Foco no aprendizado em vez de culpabilização. Sem caça às bruxas. A maior parte dos problemas é relacionada a processos e sistemas, não a indivíduos.
- Liderança servidora que libera o potencial dos times, ao invés de controlá-los centralizadamente. Releia o que está escrito acima sobre liderança não ser algo inerente ao líder.
- Comunicação aberta, honesta e bem-intencionada, criando ambientes seguros psicologicamente.
- Valorização do bem-estar, qualidade de vida e equilíbrio dos colaboradores.
- Reconhecimento baseado em entregas de valor, não horas trabalhadas ou atividades isoladas.
- Colaboração e troca de conhecimento entre áreas e equipes. Fim das fronteiras funcionais.
- Mentalidade de "ownerships" compartilhados. Todo mundo é responsável pelo sucesso coletivo.
- Flexibilidade nas formas de trabalho. Adaptação rápida aos fluxos do mercado.
- Métricas de resultados que favoreçam a inovação e autonomia em longo prazo.
Transformar a cultura é um pré-requisito para que as pessoas possam entrar em flow com mais naturalidade no trabalho.
Esse é o maior desafio das organizações hoje. Não se iluda, IA, ESG e outros acrônimos fazem parte da nossa realidade, porém, nada acontece se não se compreender definitivamente que o resultado tem que ser consequência de algo maior e não simplesmente fruto do desejo dos acionistas e do 'mercado', este ente insidioso e fugaz que nos persegue a todos.
Talvez nem todos.
Que o flow esteja com você.
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