Nos caminhos da busca interior e do autoconhecimento, dois estados de consciência se destacam como jóias preciosas: a não-dualidade e o estado de flow.
Nas últimas edições de O PSICONAUTA, tenho me dedicado a destrinchar o tema "Não Dualidade", um estado de consciência para o qual despertei há alguns anos e, acredito fortemente, pode nos levar a uma vida mais plena e equânime em todos os aspectos, inclusive (especialmente) no que tange a uma liderança consciente, humanizada, além do ego (ver mais nos posts e artigos adaptados e traduzidos da autora Katrijn van Oudheusden que venho publicando desde o início deste ano, veja um exemplo, aqui).
Ambos, o flow e a não dualidade, oferecem vislumbres de uma realidade mais rica e conectada, levando-nos a questionar as fronteiras da percepção e da experiência. Embora distintos em suas características, eles compartilham uma profunda conexão que muitos buscadores espirituais e praticantes de atividades criativas almejam entender e vivenciar.
Neste texto, mergulho na essência desses estados, explorando como a não-dualidade e o estado de flow se entrelaçam, onde encontram pontos em comum e como podemos abrir as portas para acessá-los em nossas vidas.
Recentemente me deparei com este artigo publicado em 2021, de um estudo que fala da sinergia dos dois estados de consciência, onde destaco um trechinho. Para o artigo completo, basta seguir o link aqui.
O estudo investigou a hipótese de que a relação entre o estado de flow e bem-estar é mediada por experiências não-duais. Trabalhos empíricos e teóricos anteriores sugerem que o flow compartilha semelhanças com as experiências não-duais.
O estudo atual ampliou o trabalho anterior examinando as relações entre flow, experiências não duais, emoção e bem-estar. Destaquei o trecho abaixo:
"A integração do eu durante as atividades de ativação do estado de flow é paralela às ideias encontradas na perspectiva filosófica mais ampla da não dualidade.
A não dualidade descreve uma unificação entre sujeito e objeto, de modo que os limites entre o eu e o mundo se dissolvem. Essa perspectiva permeia muitas tradições religiosas, místicas e filosóficas diferentes e pode ser encontrada explicitamente nas escolas hindus de Advaita Vedānta e Shaivismo de Caxemira, Budismo Mahāyāna e o Dzogchen tibetano e implicitamente presente nas tradições taoístas (Blackstone, 2015; Krägeloh, 2018; Wright, 2017).
Por exemplo, o flow compartilha semelhanças conceituais com a descrição taoísta de wu-wei *, ou "não fazer", "ação sem ação". No Tao Te Ching, o antigo filósofo chinês Lao Tsé descreve o caminho do Tao como uma incorporação de dicotomias (Lao Tsé, século IV a.C.). Ele incentiva que nos comportemos como a água; fluida e flexível, mas forte e poderosa.
Em nossos empreendimentos, isso significa que devemos nos esforçar para ter uma sensação de facilidade, fluidez. A princípio, parece contra-intuitivo imaginar como o desinteresse por uma meta pode ser mais eficiente para alcançá-la. Podemos conceituar o não-fazer como um comportamento sem esforço para executar uma tarefa que, de outra forma, seria considerada desafiadora".
* Minha definição preferida de Wu Wei é "não forçar", proposta originalmente por Alan Watts, veja video aqui.
Alan Watts Watts destaca que Wu significa não, e Wei significa ação, fazer ou forçar. Wu Wei é o princípio de não forçar. Se observarmos um jogador que está forçando seus movimentos e não parece estar fluindo, podemos facilmente perceber a artificialidade. Alguns dos melhores artistas, músicos e escritores trabalham com o mínimo de esforço, e é por isso que eles não se cansam de seu trabalho. Há um brilho diferente de energia em toda a sua disposição. Às vezes, Wu Wei é confundido com "nenhuma ação". Isso é frequentemente apresentado como um argumento por pessoas que têm medo de trabalhar: "Deixe as coisas acontecerem em seu próprio curso" ou "conforme o desejo de Deus".
Não caia nessa armadilha para justificar sua procrastinação ;)
Não há mal maior do que uma interpretação distorcida de um princípio que deveria ser usado para melhorar a vida de alguém.
Wu Wei é a arte de velejar, não a arte de remar. O Pano de Fundo: Compreendendo a Não-Dualidade e o Estado de Flow:
1. Não-Dualidade: Dissolvendo as Fronteiras
A não-dualidade é uma perspectiva que transcende a divisão dualista entre o sujeito e o objeto, o eu e o outro, o interior e o exterior. Ela reconhece que todas as distinções são, em última análise, ilusórias, e busca uma unidade subjacente em toda a existência. Através da prática contemplativa e da auto-investigação, o despertar para a não-dualidade permite transcender as limitações da mente egóica, da separação e experimentar a realidade em sua totalidade interconectada.
Na não-dualidade, a mente deixa de categorizar e rotular o mundo e, em vez disso, abraça a totalidade da experiência como uma única unidade. 2. Estado de Flow: A relação visceral entre Habilidade e Desafio
O estado de flow, por sua vez, é um estado de imersão total em uma atividade, onde a noção do tempo e do “eu” desaparecem, dando lugar a uma profunda concentração e envolvimento, levando a um senso de realização e satisfação intrínseca. Durante esse estado, as ações fluem naturalmente, e a pessoa se sente conectada à atividade de uma maneira que transcende a autoconsciência.
O flow é também conhecido como "estar no momento presente", é caracterizado por um profundo envolvimento e concentração na tarefa em mãos. Proposto por Mihaly Csikszentmihalyi, o estado de flow é caracterizado pela harmonia entre a habilidade exigida pela tarefa e o desafio que ela apresenta. Nesse estado, a ação parece fluir naturalmente, e a pessoa se sente compelida a seguir adiante sem esforço consciente, como se não houvesse interferência.
O quadro abaixo apresenta uma síntese das condições que podem (ou não) levar à ativação do Flow:
Em vermelho: Sistema Nervoso Simpático - Acelerado, 'luta ou fuga'. Em verde, Sistema Nervoso Parasimpático - Relaxado, desacelerado. O equilíbrio entre os dois pode ser obtido através da coerência entre a respiração e os batimentos cardíacos.
Pontos em Comum entre Não-Dualidade e Estado de Flow:
Abandono da ilusão do Eu Separado: Tanto na não-dualidade quanto no flow, há uma dissolução do eu separado. Enquanto na não-dualidade isso é alcançado através do reconhecimento da interconexão de todas as coisas, no entendimento de que somos uma consciência desperta manifesta através de nosso corpo e mente (veja artigos anteriores), no estado de flow ocorre pelo completo envolvimento e absorção na atividade, foco e concentração sustentadas, onde o "eu" desaparece na experiência.
Desprendimento de Julgamentos: Ambos os estados envolvem um desprendimento de julgamentos e avaliações, condição humana que persiste em nós desde sempre. Julgamos a nós mesmos e ao outro, o tempo inteiro... Na não-dualidade, esse 'não julgar' ocorre porque não há separação entre o observador e o observado, enquanto no flow, o foco na atividade exclui a necessidade de julgar o que está acontecendo, gerando o que definimos como "pensar e agir de forma intuitiva e natural".
Presença e Intemporalidade: Tanto a não-dualidade quanto o estado de flow envolvem uma profunda "presença", inteireza no "aqui e agora", no momento presente. Na não-dualidade, essa presença surge da percepção e entendimento da totalidade do agora, onde só ele existe, enquanto no flow, é a imersão total na atividade que leva à intemporalidade, onde o tempo parece se dissolver.
Perda da Autoconsciência: Em ambos os estados, a percepção de um ‘eu’ separado é reduzida ou desaparece. Na não-dualidade, isso ocorre porque a noção do eu separado é reconhecida como uma ilusão, e no estado de flow, a atenção total na atividade deixa pouco espaço para a autoavaliação, ocorrendo então, o fenômeno da hipofrontalidade temporária que refere-se a um estado temporário de redução da atividade no córtex pré-frontal do cérebro – parte do cérebro responsável por funções como planejamento, tomada de decisões, concentração e controle emocional e aumento na atividade de áreas relacionadas à memórias, emoções e 'insights'.
Senso de Unidade e Conexão: Tanto na não-dualidade quanto no flow, surge um profundo senso de unidade e conexão com o universo. Na não-dualidade, isso se estende a todas as coisas, enquanto no flow, está mais focado na atividade em si e na sensação de estar em sincronia com o ambiente (todos os 5 sentidos engajados na atividade).
Acessando a Não-Dualidade e ativando o Estado de Flow:
Práticas de Meditação e Auto Investigação: Para acessar a não-dualidade, práticas de meditação e auto indagação são fundamentais. Meditar sobre questões como "Quem sou eu?" pode revelar a ilusão do eu separado. No estado de flow, meditar pode ajudar a acalmar a mente, tornando-a mais receptiva ao momento presente e criando as condições para a abertura do canal do flow.
Imersão total na Atividade: Para ativar o flow, escolher atividades que desafiem suas habilidades enquanto mantém seu interesse é crucial, atividades que proporcionem um equilíbrio entre habilidade e desafio (veja o quadro acima). Identificar suas paixões e talentos naturais pode ajudar a direcionar sua energia para tarefas que estimulem um flow frequente. Concentre-se na tarefa sem se preocupar com resultados ou julgamentos. À medida que se envolve cada vez mais, o flow pode emergir.
Aceitação e Entrega: Tanto a não-dualidade quanto o flow são facilitados pela aceitação do momento presente. Aceitar o que é, sem resistência, abre as portas para uma experiência mais profunda. Na não-dualidade, é a aceitação da realidade que não há separação entre o ‘eu’ e a consciência desperta, somos mais do que o corpo e a mente. No estado de flow, é a aceitação da atividade em si e a sustentação do foco pelo tempo necessário.
Apegos e aversões são obstáculos para a não-dualidade e o flow. Praticar o desapego em relação às experiências e emoções é essencial. Na não-dualidade, é o desapego das identificações com o ego, com o indivíduo separado do mundo; no estado de flow, é o desapego dos resultados da atividade, entendendo que o melhor resultado, é consequência de um processo disciplinado de ativação do flow.
Mindfulness e Observação Interior: A prática da atenção plena (mindfulness) é uma ponte para ambos os estados. Desenvolver a habilidade de observar pensamentos, emoções e sensações sem se identificar com eles é crucial tanto para a não-dualidade quanto para o flow.
Conclusão: Além dos Limites da Percepção
A busca pela não-dualidade e pelo estado de flow nos convida a explorar as fronteiras da percepção humana. São estados que nos desafiam a transcender as limitações autoimpostas e a entrar em uma dança de consciência expandida.
À medida que a jornada interior se desenrola, encontramos a riqueza de uma realidade que vai além das aparências superficiais, mergulhando nas profundezas da conexão universal e da expressão autêntica.
Através da prática constante e da abertura para a possibilidade, podemos desvendar os véus da dualidade e entrar na dimensão infinita da consciência plena, desperta, onde a não-dualidade e o flow são os principais vetores para o despertar e a possibilidade de enxergar a enormidade e o infinito que representam a experiência humana.
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"Psiconauta" é uma palavra baseada em raízes gregas que se traduzem em “explorador da mente”. É uma mistura de "psico'', um prefixo usado para descrever processos mentais ou práticas como psicologia e termos como argonauta e astronauta, cujas “viagens e explorações dos mares e do espaço” evocam uma transcendência elevada ou espiritual. A ideia é mensalmente provocar, refletir e agir sobre temas da mente e espírito.
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